DA NORMATIVIDADE DA DEFINIÇÃO DE SUCESSO ESCOLAR NO ENSINO SUPERIOR À PLURALIDADE DAS VIVÊNCIAS ESTUDANTIS: TRAJETÓRIAS E PERFIS DE MOBILIDADE NA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Línea 1. Factores asociados al abandono. Tipos y perfiles de abandono
ALVES, Natália
ALMEIDA, Ana Nunes
VIEIRA, Maria Manuel
Universidade de Lisboa - PORTUGAL
e-mail: [email protected]
Resumen. Nesta comunicação pretendemos interrogar a definição estatística de sucesso, proposta pela OCDE e adoptada pelos estabelecimentos de ensino superior em Portugal: «a taxa de sucesso no ensino superior é definida como a proporção dos entrados pela 1ª vez num dado ciclo de estudos que completam com sucesso esse ciclo. É calculada pelo rácio do número de estudantes diplomados em relação ao número de estudantes entrados pela 1ª vez nesse ciclo n anos antes, sendo n o número de anos de estudo requeridos para completar o referido ciclo.” (OCDE, 2004, citado in OCES, 2006:3). Esta definição institucional hegemónica, baseada na sequencialidade e linearidade das trajetórias escolares, mostra-se, em nosso entender, incapaz de dar conta da multiplicidade de configurações que os percursos estudantis no ensino superior assumem. É por isso que esta visão redutora do sucesso escolar, que pressupõe um padrão de trajetória único, associado a uma figura exclusiva de aluno - a do estudante a tempo inteiro, totalmente disponível para desempenhar o seu ofício de aluno -, não contempla nem a possibilidade de serem trilhados outros percursos alternativos, mais lentos e eventualmente mais intermitentes, protagonizados por jovens ou adultos que conciliam a condição estudantil, com o exercício de uma atividade profissional e, nalguns casos, com responsabilidades familiares; nem a possibilidade de reorientações vocacionais materializadas em mudanças de curso. Que percursos-tipo de sucesso, insucesso e abandono protagonizam os estudantes do 1º ano da Universidade de Lisboa? É a questão a que nos propomos responder com base num inquérito por questionário aplicado on line, no âmbito do Projeto “Insucesso e abandono escolares na Universidade de Lisboa: cenários e percursos” desenvolvido na Reitoria da Universidade de Lisboa, em Novembro de 2009, a todos os estudantes de licenciatura que se tinham matriculado na Universidade de Lisboa no ano letivo 2008-2009. A análise realizada permitiu-nos identificar tipos diferentes de trajectórias e de perfis de mobilidade que dão conta da multiplicidade de configurações que o sucesso, o insucesso e o abandono assumem e que contribuem para interrogar a definição normativa de sucesso no ensino superior que implicitamente veicula uma figura única de estudantes e apenas aceita como legítimos e desejáveis os percursos académicos contínuos e lineares.
Descriptores o Palabras Clave: Ensino Superior, Sucesso, Insucesso, Abandono
1 Sucesso, insucesso e abandono no ensino superior
O insucesso e o abandono escolar no ensino superior, apesar do interesse que têm vindo a adquirir, não são problemáticas novas na sociedade portuguesa. Com efeito, nos finais dos anos sessenta, o estudo fundador de Sedas Nunes dava conta da reduzida taxa de sucesso neste grau de ensino, colocando em evidência a “baixa eficiência interna global do ensino superior” (Nunes, 1968a: 354-355).
Esta deficitária “eficiência” decorre da conjugação de dois fenómenos: o da reprovação e o do abandono. Como este estudo desvenda, observa-se “de um lado, uma reacção mais caracteristicamente masculina, de insistência e prossecução dos cursos, a exprimir-se numa considerável proporção de alunos com “estudos arrastados” para além das idades em que normalmente se frequenta a Universidade”; como se, acrescentamos nós, estes jovens estivessem a contra gosto compelidos a desempenhar o papel que lhes estaria previamente outorgado, submetendo-se sem entusiasmo à frequência do curso indicado, por outrem, como mais apropriado à sua futura condição social. E, “(…) do outro, uma reacção, mais predominantemente feminina, de desistência e abandono dos cursos, antes de concluídos (…).” (Nunes, 1968a: 356) eventualmente denunciadora de uma diferencial valorização do matrimónio, relativamente aos estudos e à profissão, como atributo da condição feminina, no caso das mulheres das classes sociais mais favorecidas. Assim, se o peso dos determinismos sociais de classe se revela decisivo no acesso a este nível de ensino, o mesmo parece não ocorrer no que toca ao sucesso.
Contrariamente às teses de Bourdieu e Passeron (1964), a qualidade de herdeiros (económicos e culturais) que a maioria destes estudantes universitários inegavelmente ostenta não lhes outorga, automaticamente, correspondentes vantagens escolares. Aliás, o carácter “escolástico” da pedagogia então praticada no ensino superior português, muito colada aos textos canónicos recomendados (as “sebentas”) e totalmente dependente do desempenho demonstrado nos exames, parece limitar drasticamente qualquer veleidade diletante, remetendo os estudantes à tarefa de “preparação para os exames” (Nunes, 1968b: 453). De facto, o seu investimento no estudo revela uma notória irregularidade ao longo do ano, em estreita dependência do calendário dos exames (ibidem: 452-453), a desvendar uma verdadeira “(…) aritmética utilitária, em virtude da qual os desejos de dominar as matérias são estritamente decalcados das exigências do sistema de avaliação” (Perrenoud, 1995: 81). Mais do que uma relação desinteressada com a cultura escolar, o que o estudo de Sedas Nunes demonstra é que esta minoria de jovens privilegiados estabelece, bem pelo contrário, uma relação utilitarista com o saber (Perrenoud, 1995).
Ora, a prática generalizada de “arrastamento” dos estudos não deixa de exercer efeitos de incorporação social. De tão frequente junto de uma população tão restritivamente selecionada, o fenómeno do insucesso escolar na universidade encontra-se amplamente “naturalizado”, não constituindo um problema social.
Quatro décadas mais tarde, a paisagem escolar encontra-se radicalmente modificada e o insucesso no ensino superior francamente reduzido (Vieira, 2007). Paradoxalmente, é justamente no momento em que o sucesso se consolida que o insucesso escolar surge como “problema” social. De facto, muito mais generalizado do que outrora, o sucesso tende a assumir agora a condição de norma, condenando à condição de “desviante” qualquer situação escolar contrária. Num contexto de uma maior democratização no acesso ao ensino superior, da difusão do new public management na educação (Zanten, 2004), da crise financeira e da crescente regulação e monitorização das políticas educativas por via das comparações internacionais (Barroso e Carvalho; 2008; Lawn e Nóvoa, 2005) a promoção do sucesso escolar surge como um dos objetivos das políticas públicas e da ação dos estabelecimentos deste grau de ensino. É precisamente a comparação internacional dos desempenhos dos sistemas educativos nacionais que encoraja a adoção de um conjunto diversificado de indicadores estatísticos no qual a taxa de sucesso no ensino superior se enquadra. Portugal não foge a esta tendência e adota a definição estatística proposta pela OCDE: “taxa de sucesso no ensino superior é definida como a proporção dos entrados pela 1ª vez num dado ciclo de estudos que completam com sucesso esse ciclo. É calculada pelo rácio do número de estudantes diplomados em relação ao número de estudantes entrados pela 1ª vez nesse ciclo n anos antes, sendo n o número de anos de estudo requeridos para completar o referido ciclo.” (OECD, 2004, citado in OCES, 2006:3).
Todavia, esta definição institucional hegemónica, baseada na sequencialidade e linearidade das trajetórias escolares, mostra-se incapaz de dar conta da multiplicidade de configurações que os percursos estudantis no ensino superior assumem. É por isso que esta visão redutora do sucesso escolar, que pressupõe um padrão de trajetória único, associado a uma figura exclusiva de aluno - a do estudante a tempo inteiro, totalmente disponível para desempenhar o seu ofício de aluno -, não contempla a possibilidade de serem trilhados outros percursos alternativos, mais lentos e eventualmente mais intermitentes, protagonizados por jovens ou adultos que conciliam a condição estudantil, com o exercício de uma atividade profissional e, nalguns casos, com responsabilidades familiares.
Além disso, esta definição institucional não contempla a possibilidade de reversibilidade de percursos, dimensão esta imbricada no processo de individualização nas sociedades contemporâneas (Wagner, 1996; Giddens, 1994), assente numa conceção não necessariamente linear das experiências sociais. A reversibilidade dos percursos que pode advir do confronto entre os futuros idealizados e a experiência estudantil concreta adquire, no caso português, uma maior amplitude em virtude do mecanismo do numerus clausus. Este mecanismo, que exclui muitos estudantes do curso que era a sua primeira opção, provoca um desajustamento entre vocação e colocação que alguns se recusam a aceitar. A primazia dada à autencidade de uma escolha vivida como vocação, que está na origem das atitudes de não conformação – sucessivas tentativas de entrada no curso almejado, mudanças de cursos, transferências – pode desembocar num “sucesso subjetivo” que as estatísticas oficiais se mostram incapazes de captar. Estes itinerários que escapam à linearidade prescrita e que são institucionalmente contabilizados como insucesso ou abandono, são subjetivamente apreciados pelos seus protagonistas como processos imprescindíveis na busca da realização de si. Neste sentido, tempo institucional e tempo individual de sucesso escolar podem não necessariamente coincidir nem significar forçosamente o mesmo…
Que percursos-tipo de sucesso, insucesso e abandono protagonizam os estudantes do 1º ano da Universidade de Lisboa? É a pergunta a que pretendemos responder e que nos permite desvendar a multiplicidade de configurações que o sucesso, insucesso e abandono escolares no ensino superior podem assumir.
2. Metodologia
Para compreender a complexidade dos fenómenos de sucesso, insucesso e abandono no ensino superior, e em particular na Universidade de Lisboa, a opção metodológica recaiu, numa primeira fase do Projeto “Insucesso e Abandono Escolares da Universidade de Lisboa: cenários e percursos”, sobre uma abordagem de natureza extensiva e quantitativa que se traduziu na aplicação de um inquérito por questionário.
As perguntas que compõem o instrumento de recolha de dados foram agrupadas em torno de três eixos analíticos que correspondem aos três blocos de questões em que está organizado. O primeiro bloco contempla as questões que permitem caraterizar os percursos dos estudantes durante o 1º ano na Universidade de Lisboa e identificar as dúvidas, as hesitações e as incertezas com que se debateram nesse período decisivo para a sua integração e permanência no ensino superior (Tinto, 1988; Coulon, 1997). O segundo bloco congrega as perguntas que se destinam a identificar as representações sobre o ensino superior, em geral, e a Universidade de Lisboa, em particular. O último bloco agrupa as perguntas que permitem analisar o grau de satisfação dos estudantes com os aspetos pedagógicos, institucionais, organizacionais e relacionais da experiência universitária, aspetos esses que, como vários autores referem, influenciam a permanência no ensino superior e o desempenho académico no primeiro ano da licenciatura (Thomas, 2002; Tinto, 2006; Grayson, 1997; Herzog, 2005; Ozga e Sukhnandan, 1998).
O questionário foi construído com recurso à ferramenta Survey Monkey e enviado por e- mail, em Novembro de 2009, a todos os estudantes que se tinham matriculado na Universidade de Lisboa no ano letivo 2008- 2009. Obtiveram-se 1253 respostas num universo de 3894 estudantes, o que corresponde a uma taxa de resposta de 32%. Os dados recolhidos foram objeto de tratamento estatístico com recurso a estatísticas uni, bi e multivariada.
3. Um ano depois: ficar, mudar ou abandonar
A entrada no ensino superior está longe de ser para todos os jovens um ponto de chegada; para alguns ela corresponde a um ponto de partida para um percurso académico diferente. Com efeito, o primeiro ano na universidade pode constituir uma experiência probatória, um período em que as trajetórias passadas e os projetos vocacionais são reavaliados e as escolhas, nalguns casos forçadas, passam por um criterioso processo de escrutínio. Conhecer os percursos dos estudantes da UL um ano após a sua entrada é uma forma de entender como lidam com os desafios, as tensões e os dilemas do 1º ano bem como as configurações que o sucesso, insucesso e abandono escolares assumem nas suas trajetórias.
Um ano após a matrícula na Universidade de Lisboa, a grande maioria dos estudantes (84%) mantinha-se fiel à sua escolha inicial, permanecendo no mesmo curso; aproximadamente um em cada dez tinha reorientado o seu percurso, encontrando-se a frequentar um outro curso; apenas uma reduzida percentagem (3,2%) tinha abandonado o ensino superior. Ora, um dos primeiros aspetos que ressalta deste retrato reside precisamente na reduzida percentagem de alunos investidos em processos de reorientação vocacional (12,5%), quando comparada com os 34,8% que não obtiveram colocação na sua primeira opção. As razões para a permanência num curso não desejado são várias, mas o que os dados nos revelam é que muitos destes jovens terão certamente ultrapassado as dúvidas e os dilemas de uma “não escolha”, construindo um sentido para o seu processo de escolarização no ensino superior e reconvertendo os seus projetos vocacionais iniciais.
3.1 Trajetórias de abandono
A análise das trajetórias de abandono de que são protagonistas os estudantes do 1º ano é um contributo fundamental para compreender a complexidade de um fenómeno que, embora tenha vindo a diminuir, se mantém como um dos indicadores do disfuncionamento do subsistema do ensino superior. Uma abordagem minimalista que o entenda como uma rejeição liminar da formação universitária expressa no cálculo da taxa de abandono corre o risco de ocultar a sua complexidade social, desde logo porque para a maioria destes estudantes o abandono não é percecionado como uma decisão definitiva e sem retorno. Com efeito, 89,2% dos que abandonaram, considera-o como uma paragem temporária que, nalguns casos, não corresponde sequer ao abandono do universo escolar.
A situação em que se encontram os desistentes da UL revela-nos precisamente uma pluralidade de condições perante a educação e o trabalho que contribuem para desvendar os múltiplos sentidos que o abandono encerra. Para a maioria dos estudantes (60,5%), o abandono do ensino superior correspondeu à assunção da condição de trabalhador a tempo inteiro. Divididos entre o trabalho e o estudo, 34,9% dos que abandonaram o curso fizeram-no para assumir, em exclusividade, o estatuto de trabalhador; já os restantes 25,6% trocaram literalmente a condição estudantil pela de assalariado. Colocados maioritariamente num curso que não era a sua primeira opção, a obtenção de um emprego terá certamente sido o pretexto para resolver as tensões decorrentes do desajustamento entre o projeto desejado e o projeto imposto. O ingresso no mercado de trabalho ter-se-á apresentado a estes jovens, na sua maioria proveniente de grupos domésticos dotados de reduzidos recursos económicos e culturais, como um projeto viável no quadro dos riscos e incertezas que a sua manutenção num curso não pretendido acarretava. Não é pois de estranhar que as duas únicas razões apresentadas para justificar o abandono e que remetem para as saídas profissionais - “Não ir obter resultados profissionais”; “As oportunidades de trabalho para tal curso eram mínimas”- tenham sido apresentadas por estudantes deste grupo.
Situação diferente é a dos restantes 29,5%. Ao contrário dos seus colegas para quem o abandono corresponde a uma opção pelo mundo do trabalho, estes mantêm-se ligados ao universo escolar quer porque se encontram a frequentar um curso de nível não superior (7%), quer porque estão a preparar uma nova candidatura ao ensino superior (25,6%). Ora, só uma conceção estritamente institucional e estatística do abandono permite contabilizar estes estudantes nessa categoria. Em boa verdade, nenhum deles abandonou, efetivamente, a formação. Uns deslocaram-se para outras ofertas, certamente mais adequadas ao seu projeto profissional; outros, rejeitando a conformação a um projeto que não era o seu ou confrontados com o questionamento de uma vocação que davam como certa, estão investidos na criação das condições que lhes permitam a sua realização pessoal e a expressão subjetiva da sua autenticidade.
As razões avançadas pelos desistentes para justificarem o seu abandono são variadas e replicam, na generalidade, as que são apresentadas noutros estudos sobre a temática (Curado e Machado, 2006; Veloso et al. 2010).
Tabela 1. Razões para o abandono do curso
Razões | % |
---|---|
Conciliação Estudo-Trabalho-Família | 30,6 |
Vocação | 25,8 |
Questões Financeiras | 19,4 |
Aspetos pedagógicos | 17,7 |
Saídas Profissionais | 3,2 |
Outras | 3,4 |
Fonte: OPEST/RUL
A “conciliação escola-trabalho-família” é a razão mais referida pelos desistentes. O exercício de uma atividade profissional é, para muitos, incompatível com as exigências do ofício de estudante universitário e as responsabilidades familiares. As tensões que resultam da busca em conciliar estes três planos de vida são de difícil superação e acabam por conduzir ao abandono dos estudos. Embora os dados estivessem lançados à partida, o desejo de estudar, conduz alguns a acreditarem que, com o seu esforço individual, essa conciliação seria possível. No entanto, a vivência quotidiana parece ter-se encarregado de lhes mostrar como estavam enganados.
O segundo grupo de razões atribui o abandono às dificuldades na concretização do projeto em que estavam investidos. A designação “Vocação” acolhe as explicações que dão conta das tensões e dos dilemas vocacionais com que alguns estudantes se debatem no primeiro ano da universidade. Ora estas tensões e dilemas não são específicos dos desistentes, como veremos mais adiante. O que confere a este grupo a sua especificidade é a estratégia a que recorre: o abandono, ainda que temporário, do ensino superior. O desajustamento entre vocação e colocação em virtude do regime de numerus clausus - Não ter novamente conseguido ingressar no curso em que realmente pretendo ingressar – surge, uma vez mais, como o motivo das tensões vividas e que está na origem da decisão tomada. Mas, como o primeiro ano é um período de validação, nuns casos, de questionamento das escolhas realizadas, noutros, que obriga a um trabalho reflexivo sobre si, não é de estranhar que a desilusão com o curso escolhido - O curso não era o que esperava – e a reorientação vocacional - Ambiciono outro curso, diferente daquele a que me inscrevi primeiramente - surjam também como razões explicativas para o abandono do curso em que estavam matriculados.
Uma terceira ordem de razões está relacionada com “questões financeiras”. Sendo Portugal um dos países onde o financiamento do ensino superior mais recai sobre os estudantes e as famílias (Cerdeira, 2012), não é de estranhar que os custos diretos e indiretos da sua frequência surjam como um dos motivos que conduziram alguns estudantes a desistirem. E, se, como é o caso dos trabalhadores estudantes, às dificuldades de conciliação entre escola-trabalho-família se acrescentarem os problemas financeiros, a permanência no ensino superior surge como um problema irresolúvel.
No entanto, as questões financeiras não têm um significado único. Se nuns casos elas remetem diretamente para os custos da frequência do ensino superior (propinas, material didático, deslocações) têm uma valoração negativa e são um fator impeditivo da realização de um projeto; noutros, como é o caso dos mais jovens que trocaram a universidade pelo ingresso no mundo do trabalho, o salário que passam a auferir permite a conquista da independência económica e iniciar o processo de transição para a vida adulta. O apelo da autonomia, num contexto académico pleno de riscos e incertezas, como vimos anteriormente, surge, para estes jovens, como irresistível e potenciador de um outro projeto de vida.
A última categoria de razões, com expressão, prende-se com os “aspetos pedagógicos e organizacionais”. A transição para o ensino superior é acompanhada por uma enorme mudança das estratégias pedagógicas, dos ritmos de trabalho, das relações com os professores, do tipo de trabalho académico (Vieira, 2007; Almeida e Vieira, 2009; Tavares et al, 2003). A adaptação a todas estas mudanças implica, por parte dos recém- chegados à Universidade, a aprendizagem de um novo ofício de estudante. Tratando-se de um desafio com que todos se confrontam, nem todos parecem igualmente capazes de o superarem. O volume da matéria a estudar, a pouca adequação dos cursos e das metodologias aos estudantes-trabalhadores e a ausência de apoio pedagógico são outras das razões que os desistentes apontam como estando na origem do seu abandono. Mas se, por um lado, estas razões podem ser entendidas como uma dificuldade individual de lidar com uma nova experiência académica, por outro, elas são também reveladoras do funcionamento das instituições do ensino superior e da importância que os fatores institucionais e organizacionais têm no processo de integração no ensino superior (Tinto, 2006; Pinto, 2002).
3.2 Trajetórias de mobilidade
A análise das trajetórias de mobilidade é mais um contributo para desvendar a complexidade de situações sociais que se escondem sob a designação institucional e estatística de abandono e insucesso. Elas exprimem quer a não conformação com um projeto que é imposto por via do mecanismo do numerus clausus, quer a reorientação vocacional após o confronto com o curso escolhido. Por isso, a mudança em que estiveram investidos teve como destino, para a quase totalidade dos estudantes, um curso diferente daquele que abandonaram.
Tabela 2. Distribuição dos alunos que mudaram de curso
Curso e estabelecimento de destino | % |
---|---|
Outro curso e outra Universidade | 37,9 |
Outro curso na mesma Faculdade da UL | 23,5 |
Outro curso noutra Faculdade da UL | 19,6 |
Outro curso no Ensino Politécnico | 14,4 |
Outro equivalente noutra universidade | 4,4 |
Total | 100,0 |
Fonte: OPEST/RUL
A busca da realização do projeto desejado conduz a maioria dos jovens (53,2%) para fora do território da Universidade de Lisboa. Uns foram para outras universidades; outros, para institutos politécnicos. Contudo, uma parte não negligenciável (43,1%) permaneceu na UL, limitando-se a mudar de curso.
A decisão de mudar está ancorada num conjunto diversificado de motivos, reveladores das tensões e dos dilemas com que se debatem os recém-chegados à universidade. No entanto, apesar da multiplicidade de razões apresentadas, três congregam a grande maioria das respostas (71,9%): a vocação, os aspetos pedagógicos e a cultura e clima do curso ou da faculdade.
A transição para o ensino superior é, como já referimos, um período particularmente dilemático para muitos jovens recém chegados à universidade. A adaptação a um novo contexto institucional, organizacional e pedagógico, a aprendizagem de um novo ofício de estudante, o confronto com as decisões vocacionais tomadas e, nalguns casos, o desajustamento entre a vocação e a colocação num curso que não foi a primeira opção, fazem do 1º ano, um ano particularmente crítico no percurso académico de muitos jovens. Não é por isso de estranhar que as razões mais evocadas para a mudança do curso sejam as que se prendem com a realização do projeto individual e com a integração num novo ambiente académico e sociocultural.
Tabela3. Razões para a mudança de curso
Razões | % |
---|---|
Vocação | 53,2 |
Aspetos pedagógicos | 15,3 |
Cultura e clima do Curso/UO | 10,6 |
Saídas profissionais | 7,2 |
Qualidade e imagem do curso/UO | 2,6 |
Deslocado do ambiente familiar | 3,0 |
Resultados académicos obtidos | 2,1 |
Conciliação Estudo-Trabalho- Família | 0,9 |
Questões financeiras | 0,9 |
Outra razão | 4,2 |
Total | 100,0 |
Fonte: OPEST/RUL
Uma vez mais, o desajustamento entre a vocação e a colocação – o curso que frequentava não era o curso que pretendia – surge como uma das razões mais evocadas para a mudança. Mas para outros, colocados no curso que desejavam, a decisão de mudar de curso resulta do questionamento do projeto vocacional em que estavam investidos.
O confronto entre as expetativas e a antevisão de um futuro profissional na área escolhida, leva alguns estudantes a questionarem as suas escolhas e a optarem por reequacionar o seu projeto. Afinal, não gostavam do curso que tinham escolhido, não era o que estavam à espera, não iam ser felizes…
Se, para a maioria dos estudantes é a concretização de um projeto vocacional que os move, para outros é a dificuldade de adaptação a um novo contexto académico que está na origem da decisão tomada. A transição para a Universidade revelou-se um obstáculo difícil de ultrapassar, em especial no que respeita aos aspetos pedagógicos. A dificuldade das matérias e as caraterísticas do corpo docente são os motivos mais apontados para a reorientação do projeto vocacional.
No entanto, a dificuldade atribuída aos conteúdos programáticos do curso assume duas configurações semânticas distintas. Fazendo eco das palavras de alguns professores da UL (Almeida, Curado e Oliveira, 2010), a falta de bases do secundário é a explicação avançada por alguns entrevistados para as dificuldades académicas com que se confrontaram no 1º ano. Para outros, a dificuldade é inerente aos próprios conteúdos e conduz à perda de sentido do trabalho académico,
Mas não é apenas a exigência e a complexidade das novas temáticas que se constitui num fator crítico para os estudantes que mudaram de curso. A qualidade pedagógica do corpo docente é, por alguns, apontada como uma das razões que dificultou a sua adaptação e contribuiu para a alteração do percurso académico.
Independentemente das razões que estiveram na origem da mudança de curso, a avaliação da decisão tomada não podia ser mais positiva. A mudança permitiu quer o reencontro com o projeto vocacional em que estavam investidos quer a confirmação de uma nova vocação que ganhou forma durante o período experimental que foi o 1º ano. Passado um ano, estes estudantes estão satisfeitos, motivados e sentem-se aliviados por terem encontrado o seu lugar ou estarem onde sempre desejaram estar.
3.3 Trajetórias de imobilidade
As trajetórias de imobilidade são, como vimos anteriormente, as que dominam entre os estudantes do 1º ano da Universidade de Lisboa. Todavia, esta imobilidade está longe de corresponder a uma integração não dilemática no novo contexto académico. A transição para o ensino superior, mesmo para aqueles que permaneceram no mesmo curso, não deixa de ser acompanhada por momentos de dúvida e de questionamento quanto às opções tomadas. Com efeito, embora 58,3% dos estudantes nunca tenha pensado em mudar de curso, 31% foi assaltado por essa ideia e 10,8% pensou seriamente na mudança.
Tabela4. Razões para ter pensado em mudar de curso
Razões | % |
---|---|
Vocação | 43,8 |
Aspetos pedagógicos | 28,1 |
Saídas profissionais | 5,2 |
Cultura e clima do Curso/UO | 4,7 |
Deslocado do ambiente familiar | 4,2 |
Resultados académicos obtidos | 4,2 |
Conciliação Estudo-Trabalho- Família | 2,6 |
Qualidade e imagem do curso/UO | 0,5 |
Questões financeiras | 0,5 |
Outra razão | 6,2 |
Total |
Fonte: OPEST/RUL
Sendo múltiplas as razões que explicam que um grupo importante de estudantes tenha durante o 1º ano pensado em reorientar o seu percurso académico, apenas duas congregam 71,9% das respostas: a vocação e os aspetos pedagógicos. Se a primeira coloca uma vez mais a tónica nos dilemas vocacionais, nos desajustamentos entre as expetativas iniciais e o exercício da nova condição estudantil, na tensão entre um projeto reivindicado e um projeto atribuído; a segunda enfatiza a importância que a dimensão institucional assume na integração e adaptação dos estudantes recém-chegados à universidade. A exigência e intensidade do trabalho académico, a relação com os professores e a falta de apoio são algumas das razões avançadas por estes estudantes e que questionam o processo de ensino- aprendizagem e os modos de organização pedagógica da Universidade de Lisboa.
4. Percursos-tipo de mobilidade
As trajetórias que descrevemos são protagonizadas por estudantes com propriedades sociais e sistemas de disposições distintos. O recurso a um conjunto de procedimentos estatísticos permitiu identificar nove perfis tipo de percursos dos estudantes do 1º ano e que contribuem para interrogar a definição normativa e estatística de sucesso no ensino superior.
O perfil 1 corresponde ao grupo de estudantes investidos em trajetórias de mobilidade no ensino superior (10%). Um ano depois de terem ingressado na UL, todos se encontram a frequentar um curso diferente. A decisão de mudar de curso começa a ganhar forma logo no início do 1º ano, com os estudantes a terem nuns casos dúvidas, noutros a certeza de que não iriam concluir o curso em que tinham sido colocados. Decididos a reorientar o seu percurso académico, estes jovens que exercem o ofício de estudante a tempo inteiro assumem face à avaliação das unidades curriculares do curso que estavam a frequentar, duas estratégias distintas: ou realizam com sucesso algumas unidades, talvez aquelas que lhes permitem com mais facilidade concretizar o seu projeto de mudança; ou, pelo contrário, optaram por não serem avaliados em nenhuma, exprimindo desta forma a desafeição em relação ao curso em que foram colocados. Neste perfil estão sobre representados os estudantes de Medicina Dentária e os que na Reitoria da UL frequentam o curso de Ciências da Saúde, que ingressaram no ensino superior com uma classificação igual ou superior a 166/200 e que não escolheram o curso como 1ª opção. A sobre representação neste grupo dos estudantes, “bons alunos”, que não estão no curso pretendido é o dado que mais contribuiu para ilustrar a complexidade do processo de transição para o ensino superior, em particular para aqueles que são confrontados com o desajustamento entre um projeto vocacional desejado e um projeto vocacional atribuído e para questionar a definição institucional de sucesso escolar.
O perfil 2, claramente minoritário (1,5%), congrega os estudantes que trocaram a formação universitária por uma outra de nível partição estável do cluster (9 grupos) a partir do nível de sobrerepresentação das modalidades de cada variável. não superior e têm intenção de repetir os exames nacionais para se voltarem a recandidatar ao ensino superior. Investidos num outro projeto, eles, tal como alguns dos seus colegas do perfil anterior, não compareceram à avaliação em nenhuma unidade curricular. Mas, ao contrário destes, já deram maioritariamente por concluído o seu processo de transição para a adultícia. São estudantes trabalhadores, que conciliam o estudo com uma atividade profissional exercida a tempo inteiro, com idades superiores a 23 anos e que vivem com a família de procriação.
O perfil 3, também ele residual (2,5%), agrupa os que abandonaram o ensino universitário, mas que pensam voltar a candidatar-se, reforçando assim a ideia de que o abandono não assume, pelo menos do ponto de vista simbólico, um caráter definitivo. Pelo contrário, ele parece mais assemelhar-se a uma suspensão temporária do projeto académico do que do que à sua rejeição liminar. Durante o período que frequentaram os cursos de Geografia e de Línguas, Literaturas e Culturas, estes estudantes ou reprovaram a todas as unidades curriculares ou não foram sequer avaliados. À semelhança dos seus colegas do grupo anterior, também eles conciliavam o exercício de uma atividade profissional a tempo inteiro com o ofício de estudante e viviam sozinhos ou com a família de procriação. Um atributo que distingue estes estudantes dos anteriores são as suas origens socioeducativas. Eles são oriundos de grupos domésticos dotados de reduzidos recursos educacionais: ambos os progenitores possuem apenas o 1º ciclo do ensino básico.
Os restantes seis perfis correspondem aos estudantes que protagonizam trajetórias de imobilidade no ensino superior e dão-nos conta da multiplicidade de situações que se escondem sob a aparente homogeneidade destes percursos. Com efeito, partilhando um percurso objetivo comum, os diferentes perfis de estudantes organizam-se, fundamentalmente, em torno do sucesso escolar no primeiro ano e de duas dimensões dos sistemas de disposições: as expetativas iniciais quanto à conclusão do curso e as dúvidas vocacionais.
O perfil 4, que corresponde a 9,4% dos inquiridos, define-se pela predominância dos estudantes colocados na 1ª opção, que nunca pensaram em mudar de curso e que desde o início estavam decididos a conclui-lo. Neste grupo estão sobre representados os alunos de Ciências e de Direito, do sexo masculino, com idades superiores a 23 anos, já inseridos no mercado de trabalho, exercendo uma atividade profissional a tempo inteiro ou a tempo parcial e que vivem sozinhos ou com a família de procriação. Oriundos de núcleos familiares detentores de um reduzido capital escolar – ambos os progenitores possuem o 1º ciclo do ensino básico – estes estudantes foram protagonistas de trajetórias escolares marcadas por pelo menos uma retenção durante a escolaridade obrigatória. Este é, sem dúvida, o perfil que melhor retrata o que tem vindo a ser designado por novos públicos do ensino superior (Pasqueiro, 2009; Reay, 2002). A idade, a inserção na vida ativa, as origens socioeducativas, a partilha de um projeto vocacional definido que o confronto com a nova experiência estudantil não abala conferem a estes estudantes uma identidade própria no quadro da população recém chegada à Universidade de Lisboa.
O perfil 5 congrega os estudantes que durante o 1º ano pensaram seriamente em mudar de curso (10,4%). Trata-se de alunos que frequentam cursos na -Facudade de Letras e cujas mães exercem funções de topo na administração pública ou no setor privado como dirigentes ou quadros superiores de empresas.
O perfil 6 corresponde a 23,6% dos inquiridos e carateriza-se pela sobre representação dos estudantes de Medicina, crentes nas suas escolhas e com expetativas iniciais positivas. Quando ingressaram no curso estavam determinados a conclui-lo e nunca pensaram em mudar. Investidos na concretização do projeto vocacional que a nova experiência estudantil não abalou, concluíram o 1º ano com aprovação a todas as unidades curriculares. Os jovens que constituem este grupo são predominantemente do sexo feminino, têm idades inferiores a 19 anos e são estudantes a tempo inteiro. Foram protagonistas de percursos escolares de excelência: nunca reprovaram e ingressaram no ensino superior com uma classificação superior a 166/200. Vivem em famílias nucleares dotadas de elevados recursos económicos e culturais: os pais são dirigentes ou quadros superiores de empresas; as mães exercem profissões intelectuais, científicas ou artísticas.
O perfil 7 é o dominante entre os estudantes inquiridos (25,7%). Ele congrega aqueles que durante o 1º ano pensaram em mudar de curso. Revelador das tensões e dos dilemas vocacionais com que se debatem os recém chegados à universidade, este pensamento está particularmente difundido entre os alunos de Ciências, matriculados nos cursos de Engenharia Informática, Física e Biologia, e que transitaram para o segundo ano sem terem tido aprovação a todas as unidades curriculares. Trata-se de estudantes com idades inferiores a 19 anos, que ficaram retidos pelo menos uma vez no ensino secundário e que ingressaram no ensino universitário com uma classificação entre 135/200 e 166/200.
O perfil 8, embora corresponda a uma percentagem reduzida de estudantes (7,2%), é o que melhor exprime as dificuldades de adaptação dos estudantes no novo contexto académico. Neste grupo estão sobre representados estudantes de Direito e Ciências da Saúde com elevadas expetativas quanto à conclusão do curso e com um projeto vocacional definido. Eles estão decididos a concluir o curso que se encontram a frequentar e durante o 1º ano nunca pensaram em mudar. No entanto, as disposições favoráveis que os caraterizam parecem não ser suficientes para assegurar uma trajetória de sucesso no ensino superior. A reprovação a todas as unidades curriculares que é um atributo distintivo deste grupo, surge como algo surpreendente em estudantes que não manifestam um sentimento de desafeição relativamente ao curso e que coloca em evidência a complexidade que perpassa o fenómeno do insucesso escolar.
O perfil 9 congrega 17,6% dos estudantes do 1º ano. Neste perfil estão sobre representados jovens seguros das suas escolhas e que, por isso, nunca pensaram em mudar de curso. São maioritariamente estudantes a tempo inteiro, com idades inferiores a 19 anos que frequentam os cursos de Psicologia e de Farmácia e que transitaram para o segundo ano com aprovação em todas as unidades curriculares. Juntamente com os seus colegas que integram o perfil 6, são aqueles que melhor se enquadram na conceção institucional de sucesso e mais se adequam à figura de estudante que lhe está associada: jovem, que exerce o seu ofício a tempo inteiro, orientado para a realização de um projeto vocacional inabalável, portador de elevadas expetativas quanto à conclusão da formação académica e que o sucesso académico, alcançado no 1º ano, certamente não defraudará.
Conclusões
As trajetórias de que foram protagonistas os estudantes da UL dão-nos um retrato das formas objetivas que assume a experiência estudantil no primeiro ano e das razões que estão na sua origem, mas também dos dilemas e das tensões com que se debatem neste ano de transição. As trajetórias de abandono, de mudança e de imobilidade exprimem, então, modos diferentes de viver a condição de estudante universitário.
As trajetórias de abandono são, sem dúvida as que mais questionam quer o funcionamento e a organização das unidades orgânicas da UL, quer o sistema de financiamento do ensino superior, mesmo quando este abandono é percecionado como temporário e reversível. A dificuldade em conciliar escola-trabalho-família, os aspetos pedagógicos e as dificuldades financeiras ancoram as razões destas trajetórias, maioritariamente, em fatores de natureza institucional e económica cuja alteração escapa à ação estritamente individual.
As trajetórias de mobilidade são, por seu turno, as que mais interrogam a definição estatística e administrativa de sucesso e que melhor desvendam os efeitos perversos do mecanismo de numerus clausus. O desajustamento entre um projeto vocacional desejado e um outro diferente, imposto por via do mecanismo de afetação dos candidatos aos lugares disponíveis e que atinge mesmo os alunos com percursos de excelência no ensino secundário, contribui para que a entrada na universidade não seja encarada como o corolário de uma trajetória previamente definida, mas antes como uma prova à autenticidade do projeto individual. A mudança de curso surge assim como uma estratégia de não conformação destinada a repor a coerência da biografia individual. Ora estas estratégias confrontam a definição convencional de sucesso escolar com duas limitações importantes. Por um lado, elas revelam uma dimensão de sucesso que não é captada por via da definição administrativa. Trata-se da dimensão subjetiva do sucesso. A mobilidade, contabilizada pela instituição como insucesso e/ou abandono, ao permitir aos que nela estiveram investidos a concretização da sua vocação e a realização de si configura um outro tipo de sucesso, um sucesso que tem origem na subjetividade individual e que as estatísticas oficiais se mostram incapazes de apreender. Por outro lado, elas questionam a normatividade em que assenta a definição de sucesso que não contempla a reversibilidade dos percursos académicos e que ao impor uma figura única de estudante do ensino superior, desclassifica e ostraciza as múltiplas formas contemporâneas de viver a experiência estudantil. As trajetórias de imobilidade, por seu turno, colocam em evidência o carater dilemático do 1º ano, mesmo para aqueles que permaneceram no curso em que foram colocados. A elevada percentagem de estudantes que questionou as suas escolhas e pensou em reorientar o seu percurso académico é, sem dúvida, o indicador que melhor espelha a complexidade experiencial da transição para o ensino superior. Entre o questionamento de uma vocação que tinham como inquestionável e o confronto com um projeto não desejado; entre as exigências do novo ofício de estudantes e as condições objetivas para o seu exercício, o primeiro ano é, para estes alunos, um período que exige um trabalho de reinvenção de si como indivíduo, nuns casos, como estudantes, noutros. Mas são os perfis tipo retirados da análise hierárquica de clusters que mais contribuem para elucidar sobre as caraterísticas que assumem os diferentes modos de viver o 1º ano, sobre os atributos sociais, académicos e disposicionais dos seus protagonistas e sobre a multiplicidade de formas que o abandono, o sucesso e o insucesso se revestem.
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